Principais desafios para a erradicação de Hepatites Virais

Assinalou-se a 28 de Julho o Dia Mundial das Hepatites, uma doença silenciosa considerada como uma das preocupações de saúde pública no mundo. Para um melhor entendimento sobre a doença, o INFoINS entrevistou Dr. Nédio Mabunda, investigador do INS, com pesquisas relacionadas aos vírus causadores destas enfermidades.

INFoINS: O que é Hepatite?

Nédio Mabunda (NM): Hepatite é o termo genérico que indica a presença de uma inflamação (reacção do organismo a uma infecção ou lesão dos tecidos) no fígado. Há diferentes causas possíveis, entre elas a viral, autoimmune, medicamentosa e alcoólica.  

INFoINS:  Pode explicar melhor sobre a causa viral da Hepatite?

NM: A hepatite viral é causada por um grupo de vírus que tem em comum o tropismo (capacidade de um vírus infectar especificamente determinadas células de um organismo vivo e não outras) pelos hepatócitos (células encontradas no fígado). São conhecidos cinco vírus que causam a hepatite, nomeadamente: vírus da hepatite A (HAV), vírus da hepatite B (HBV), vírus da hepatite C (HCV), vírus da hepatite D (HDV) e o vírus da hepatite E (HEV).

INFoINS: E qual é a diferença entre esses vírus da hepatite?

NM: Os vírus das Hepatites A e E são de transmissão oro-fecal (principalmente através da água e alimentos contaminados) e geralmente com uma resolução autolimitada. Já os vírus das hepatites B, C e D são de transmissão sanguínea e tem potencial para evoluir para hepatite crónica, cirrose e cancro do fígado. O vírus da hepatite D tem a particularidade de infectar apenas indivíduos que estejam infectados pelo vírus da hepatite B.

INFoINS:  A maior preocupação em relação aos vírus de hepatite tem sido dada ao HBV e HCV? Para além do exposto acima, existe outra razão?

NM: Os dois vírus contribuem com pouco mais de 90 por cento da mortalidade por hepatites virais ao nível global. Dados publicados pela Organização Mundial da Saúde (OMS) em 2021 mostram que as hepatites virais crónicas B e C causaram 1,11 milhões de mortes em 2019 no mundo, número superior à de mortes pelo HIV no mesmo ano. Das mortes por hepatites virais em 2019, 0,8 milhões são atribuídas à infecção pelo vírus da hepatite B e 0,3 milhões ao vírus da hepatite C.

PREVALÊNCIA DE HEPATITES É ALTA EM MOÇAMBIQUE

INFoINS: Que dados existem sobre a ocorrência das hepatites virais crónicas em Moçambique?

NM: Em Moçambique não há dados com abragência nacional sobre a prevalência das hepatites B e C. Porém, estima-se uma prevalência de 1,3 por cento para HCV, e 8 por cento de HBV. Estes dados colocam Moçambique como um país de elevada endemicidade para a hepatite B. Não há registo de ocorrência de Hepatite D em Moçambique.

INFoINS: E qual é a taxa de mortalidade pelas Hepatites virais crónicas no país?

NM: Há escassez de dados sobre a taxa de mortalidade ligada as hepatites virais crónicas. No entanto, um estudo recentemente publicado no Lancet Gastroenterology and Hepatology estimou para Moçambique, em 2019, 733 mortes devido a complicações ligadas ao vírus da hepatite B.

Importa referir que uma das complicações ligadas as hepatites virais é o cancro do fígado e em Moçambique é o terceiro mais comum entre os homens. Dados publicados no website da Coalition for Global Hepatitis Elimination estimam que 40 mortes por cancro do fígado em Moçambique, por ano, são atribuídas ao HBV. Adicionalmente, estimam, para o ano 2019, a ocorrência de 967 mortes por complicações ligadas a infecção pelo vírus da hepatite C. Este vírus é atribuído 13 mortes por ano devido ao cancro do fígado em Moçambique.

HÁ VÁRIAS FORMAS DE TRANSMISSÃO DAS HEPATITES

INFoINS: Pode descrever de que maneira ocorre a transmissão das hepatites virais crónicas?

NM: Os vírus das hepatites B e C são de transmissão sanguínea. A transmissão da hepatite B  pode acontecer por sangue/hemoderivados contaminados ou outros fluidos corporais através de vasos sanguíneos, pele ou membranas mucosas. A transmissão vertical do HBV (mãe para o filho) pode acontecer por via transplacentária ou no momento do parto.

Já o vírus da hepatite é mais transmitido pela reutilização ou esterilização inadequada de material médico, especialmente seringas e agulhas nos cuidados de saúde; partilha de agulhas ou outro material perfuro-cortante pelos usuários de drogas injetáveis e transmissão pela transfusão sanguínea. O vírus da hepatite C pode ser transmitido de mãe para o bebê e através de práticas sexuais que envolvam exposição de sangue, no entanto estes modos de transmissão não são comuns.

INFoINS: . Como cursa a infecção por HBV e HCV?

NM: O decurso da infecção por HBV e HCV varia entre os indivíduos infectados.

A hepatite C aguda é geralmente assintomática e para a maioria não leva a uma doença com risco de vida (insuficiência hepática fulminante). Aproximadamente 30 por cento de indivíduos infectados por HCV eliminam o vírus espontaneamente em seis meses após a infecção, sem qualquer intervenção médica. Os restantes 70 por cento de indivíduos desenvolvem infecção crônica por HCV. O risco de cirrose hepática em indivíduos com infecção crônica varia de 15 a 30 por cento num período de 20 anos. O risco de desenvolvimento do cancro do fígado é de 1 a 4 por cento por ano.

A infecção por HBV pode variar de uma forma aguda e autolimitada (90-95% dos indivíduos adultos) para hepatite fulminante (menos de 1% dos casos). Uma minoria de indivíduos (cerca de 5%) evolui para hepatite B crônica que, por sua vez, pode progredir para cirrose hepática e cancro do fígado.

INFoINS: Como é feito o diagnóstico das hepatites virais crónicas?

NM: O diagnóstico clínico baseia-se na observação de sinais da doença, como fadiga, mialgia (dor muscular), febre, náusea, icterícia (presença de uma cor amarelada na pele, nas membranas mucosas ou nos olhos) e colúria (urina escura).

O diagnóstico laboratorial das Hepatites B e C pode ser feito através de testes rápidos (similares ao teste de HIV) que detectam antígeno (para HBV) e anticorpos (para HCV) ou testes com o mesmo princípio, mas baseados em laboratório. Para a hepatite C é importante a confirmação com testes moleculares ou alternativos, dado que o teste de anticorpos mostra apenas exposição ao vírus (passada ou presente).

INFoINS: Existe cura para as hepatites virais crónicas?

NM: Estão disponíveis estratégias de tratamento para Hepatice C com um sucesso em mais de 95 porcento dos indivíduos infectados.

Por sua vez, o tratamento para a Hepatite B visa suprimir a replicação (multiplicação) do vírus e, consequentemente, reduzir o risco de progressão para cirrose hepática e desenvolvimento do cancro do fígado.

O Ministério de Saúde produziu um documento que orienta o rastreio, seguimento clínico e tratamento das Hepatites virais crónicas denominado “Protocolo clínico e directrizes terapêuticas para Hepatites B e Hepatites C em Moçambique”, disponível em www.misau.gov.mz.

INFoINS: Que estratégias existem ao nível global para a eliminação das hepatites virais crónicas?

NM: Existem várias iniciativas em implementação para a eliminação ou controlo da doença. A OMS preconiza a vacinação para Hepatite B em crianças e outros grupos de risco. Igualmente está em implementação o programa de prevenção da transmissão vertical (mãe para o filho); avaliação da segurança sanguínea (bolsas de sangue testadas com qualidade); Injecção Segura; Redução de danos (seringas ou agulhas distribuídas para usuários de drogas injectáveis) e diagnóstico e tratamento para HBV e HCV.

Uma modelagem realizada em Moçambique pela Center for Disease Analysis Foundation em colaboração com o Ministério da Saúde mostrou que seguindo as recomendações da OMS para eliminação das hepatites virais crônicas, evitar-se-iam 5.900 mortes, 16.400 novas infecções, 14.400 casos de cirrose e 4.800 casos de cirrose descompensada ou de cancro do fígado até 2030.

INS ESTABELECE CAPACIDADE DE SEQUENCIAMENTO GENÉTICO DAS HEPATITES

INFoINS:  Qual é o contributo do Instituto Nacional de Saúde para eliminação das hepatites virais crónicas como problemas de saúde pública em Moçambique?

NM: O INS tem trabalhado em várias áreas.

  • O INS está representado no grupo técnico de Hepatites Virais Crónicas. O grupo apoia e aconselha o programa nacional de controlo de ITS HIV/SIDA do Ministério da Saúde na operacionalização de actividades na área de hepatites virais crónicas.
  • Na área Laboratorial, o INS possui laboratórios de referência para a testagem serológica e molecular das hepatites virais crónicas, tendo assim capacidade para treinar, controlar a qualidade da testagem e dar apoio à rede de diagnóstico das hepatites virais crónicas no país. Por outro lado, está em curso o estabelecimento da capacidade de sequenciamento genético (caracterização genética) para as hepatites B e C no país.
  • Na área de investigação, o INS tem projectos em curso para o diagnóstico das hepatites virais crónicas, cujo objectivo é trazer testes simplificados, com maior desempenho técnico, próximos do paciente e adaptados à situação do país; na área de epidemiologia, estudos tem sido feitos em várias populações, com objectivo de trazer a carga da doença em Moçambique. Estes dados são importantes para a planificação e implementação de acções com vista a eliminar as hepatites virais crónicas.
  • O INS tem também trabalhado na área de caracterização genética das hepatites virais crónicas, dado que a genética dos mesmos tem impacto no diagnóstico, decurso da infecção e tratamento.
Julgamos que estas acções e outras por executar poderão contribuir para levar o cuidado das hepatites para mais próximo de cada moçambicano.