FRUTO DO PROGRAMA “CORAÇÃO COM MOÇAMBIQUE”: Moçambique progride na abordagem à doença cardíaca reumática

O Programa de Determinantes de Doenças Crónicas (PDDC) do Instituto Nacional de Saúde, por meio do projecto Cores para salvar o coração e em parceria com Sociedade Portuguesa de Cardiologia, lançou, na última segunda-feira (03.07), uma campanha de educação sanitária e despiste para a doença cardíaca reumática na cidade de Maputo. A acção vai gerar avanços significativos para o país nesta área sanitária.

O presidente honorário da referida sociedade, Víctor Gil, fez saber que foi sob inspiração do projecto Cores para salvar o coração, implementado sob liderança da chefe da Unidade de Investigação Biomédica de Mavalane (UIBM), Ana Olga Mocumbi, que as duas organizações criaram um programa próprio, designado “Coração com Moçambique”.

“Esta primeira missão consiste na vinda de um grupo de 10 cardiologistas, que vão permanecer em Moçambique durante duas semanas, integrando um conjunto de programas. Isto é o início de outras várias acções, que começaram com o curso de preparação dos profissionais de saúde daqui”, disse, destacando que o país vai receber equipamentos médicos, que vão ampliar a sua capacidade de identificação de doenças cardíacas, e os profissionais vão ser treinados na área.

Víctor Gil refere que, em concreto, está a ser feito o rastreio da doença em crianças e grávidas, com recurso à ecocardiografia, uma técnica de diagnóstico que permite fazer o diagnóstico com total rigor. Trata-se duma actividade que vai culminar com o encaminhamento dos doentes identificados para o tratamento. Em paralelo com o rastreio, segundo o interlocutor, as equipas dos dois países fazem troca de experiência.

A gestora do projecto Cores para salvar o coração, Keila Jamal, explica que a parceria surge no contexto dum intercâmbio de valências profissionais entre as duas partes, no qual os médicos portugueses procuram ganhar experiência no campo nas áreas de detecção e rastreio da doença. Igualmente, ela assinala que o apoio é de grande importância para Moçambique, na medida em que vai capacitar médicos nacionais, num contexto em que o país tem poucos profissionais de apoio nas actividades de género.

“O grande ganho para o país é a troca de experiência, o que vai permitir a capacitação de profissionais médicos não cardiologistas, de modo a conseguirem realizar esta actividade, atendendo que temos défice de cardiologistas, profissionais especializados para a realização da ecografia cardíaca”, sublinhou.

Keila Jamal explica que o rastreio da doença cardíaca reumática é importante, porque permite a detecção precoce da doença, sendo que, no caso das crianças, se ela for identificada precocemente, pode-se fazer o seguimento adequado e garantir-se que a criança cresça, de alguma forma, saudável.

A fonte realça que a detecção tardia afecta, negativamente, a qualidade de vida do indivíduo, sujeitando-o mesmo ao risco de morte.

A campanha, segundo a gestora, inclui a avaliação da cavidade oral, sendo que a infecção que leva à doença reumática cardíaca tem possibilidade de começar em várias fases, sendo a garganta a principal.

“A criança pode estar afectada pela bactéria nos dentes, que pode vir a afectar as amígdalas, levando à lesão cardíaca. Então, neste rastreio, fazemos esta avaliação geral para conseguir abranger a doença no seu todo”, esclareceu.

Nesta fase inicial, a campanha é feita apenas a nível da cidade de Maputo, abrangendo a Escola Primária Completa Matchiki-Tchiki, o Hospital Central de Maputo (HCM) e a Clínica Universitária da Universidade Eduardo Mondlane, porém a coordenação perspectiva alargar a cobertura para outros pontos do país.

A gestora partilhou as razões da escolha do estabelecimento de ensino como ponto de partida para a actividade e fez saber que a campanha em referência é a segunda. A primeira foi realizada no ano passado, abrangendo mais de 900 petizes em uma semana.

“Muitas vezes, as crianças não são atendidas nas unidades sanitárias também por falta de conhecimento e de seguimento, incluindo a falta de cultura de visitar a unidade sanitária. Por isso, decidimos realizar esta actividade aqui, sendo que a escola facilita o acesso às crianças e o acesso das crianças aos cuidados de saúde”, justificou.

A directora da escola, Stela Langa, partilhou que a direcção acolheu com alegria a escolha da sua unidade de ensino, tendo cuidado de garantir a colaboração dos pais e encarregados de educação dos petizes, por meio duma sensibilização que incluiu a assinatura de termo de consentimento para a participação dos seus educandos na actividade.

“A escola tem cerca de 2.700 crianças de 1ª à 6ª classes, com idades situadas no intervalo dos 7 a 14 anos. O nível de consentimento dos pais e encarregados é positiva, situando-se em torno de 60 por cento neste primeiro dia, e estamos confiantes na subida do número”, disse. O projecto Cores para salvar o coração tem duas componentes e é resultado de uma colaboração entre o INS, através do PDDC, e instituições parceiras. Nesta colaboração, o INS intervém na componente clínica, sendo que a componente de educação é gerida pelo Mozambique Institute for Health Education and Research.

Cerca de mil mulheres poderão ser abrangidas pelo rastreio

Em grávidas, o rastreio é feito no HCM, no âmbito do estudo “RESCUE”, um projecto de rastreio de doenças cardiovasculares em mulheres em idade reprodutiva, igualmente levado a cabo pela UIBM.

A coordenadora do referido estudo, Adjine Mastala, explica que o rastreio é complementado pelo seguimento até 12 meses após o parto, e ambos têm em vista evitar mortes maternas e fetais, garantindo, portanto, o melhor desfecho da gravidez.

“O rastreio que estamos a fazer consiste na avaliação, para ver se as mulheres em idade reprodutiva têm ou não tensão alta e se tem alterações do ponto de vista de ecografia e no coração”, explicou, referindo que a meta é rastrear 1000 mulheres puérperas (que acabam de ter bebés).

Com duração de duas semanas, a campanha é levada, para além de cardiologistas portugueses e médicos moçambicanos, por activistas do projecto Cores para salvar o coração e técnicos de saúde e administrativos.

Activistas inspiram pela dureza da experiência vivida

Domingos Magalhães e Atija Saide são activistas do projecto Cores para salvar o coração desde 2018. Eles abraçaram a causa do activismo por conta de experiências enfadonhas que tiveram ainda na fase da adolescência, tendo, amargamente, aprendido cedo a lidar com a doença reumática cardíaca.

Magalhães foi acometido pela doença em 2010, aos 15 anos de idade. Conta que, certo dia, regressando da escola, teve dificuldades para andar, por conta de dores. Depois de várias tentativas de fracassadas de solucionar o problema num centro de saúde local, ele foi transferido para um hospital geral da cidade de Maputo. Porque a solução nunca chegava, teve uma segunda transferência, desta vez, para o HCM. Aqui, finalmente, descobriu-se o verdadeiro motivo do sofrimento: doença reumática cardíaca!

Iniciado o seguimento no HCM, o jovem Domingos teve de passar por uma cirurgia em 2011, pois o seu coração tinha uma válvula que dificultava a saída de sangue. Hoje, ele diz estar bem e partilha que o projecto foi de grande ajuda, pois, por meio dele, aprendeu muito sobre a doença.

“Com a cirurgia, sinto-me uma nova pessoa! Vejo que o projecto é benéfico, porque ensina às crianças. Há técnicos de saúde que não sabem muito sobre este assunto, eles chegam a ficar espantados, quando ouvem falar da doença cardíaca. É bom ser activista, porque, quando ensino, também aprendo”, disse o jovem, manifestando o desejo de ver a iniciativa a alcançar outras partes do país, ciente de que há pessoas que têm a doença, mas não a conhecem.

Por sua vez, Atija Saide sofreu com a doença e, pelo resto da vida, tem uma sequela indelével. É que, por conta da cardiopatia reumática, ela viu um dos seus membros inferiores a ser amputado. Questionada sobre como está hoje, ela respondeu: “Uma vez coração doente, é coração doente para sempre”!

Atija lembra-se de alguns episódios de amigdalites, mas não se recorda em qual deles teve a febre reumática, que lhe causou a cardiopatia reumática. Simplesmente, ela está certa de que não tratava, e, desta maneira, tudo começou. O tempo ia passando e, à dada altura, em 2013, teve uma malária grosseira que lhe provocava dores generalizadas, cuja razão os médicos não sabiam explicar.

“Os meus membros inferiores, a barriga e os braços ficaram inchados. Só quando se seguiu o problema no HCM foi descoberto que se tratava de um problema cardíaco”, revelou, realçando que a descoberta conheceu um processo muito lento, tendo tido de passar por vários estágios. Aliás, ela aponta: “Infelizmente, por conta disso, ando de prótese, porque perdi a pena direita”.

A activista diz ser testemunha de que a doença destrói vidas. Com tristeza, lembra-se de pessoas que perderam a vida e outras que não conseguem o tratamento adequado.

À semelhança do seu colega, Atija vinca o valor do projecto, afirmando que este é de uma grande valia, e explica. Igualmente, ela refere que é com muita alegria que colabora como activista.

“Eu, como doente há mais de 10 anos, com uma cardiopatia reumática por causa da febre reumática, passar o ensinamento, principalmente às crianças, sobre como prevenir é como se estivesse a dar uma luz de um futuro melhor para elas, porque viver com esta doença, sobretudo em Moçambique, é muito complicado. Por isso, passar a informação de que uma possível dor na garganta pode aleijar o coração é de muita valia”, vincou.

Relativamente às dificuldades, Atija fala da questão da medicação e de locomoção à unidade sanitária, tendo em conta que não são todos os hospitais que têm cardiologistas e que o número de médicos é diminuto em Moçambique.

O programa Coração com Moçambique, segundo Víctor Gil, tem o alto patrocínio do Presidente da República de Portugal e envolve outras entidades, tais como o Instituto Camões e a Fundação Aga Khan.